Acordo e sinto todos os músculos do meu corpo doridos. Não é bom sinal. O espaço entre cada acordar e voltar a adormecer parece-me de cinco minutos. Na verdade, é de uma hora, dizem-me. Aquele gajo que aparece com a língua de fora tinha razão lá com aquilo da relatividade. Olho para o telemóvel, consulto as mensagens que ficarão por responder e telefono para as duas autoridades competentes. Ainda sou vivo, apesar de das dez horas que dormi. Ainda no escuro do quarto não consigo deixar de ouvir o som constante dos carros que passeiam lá baixo. Diria que é um só, enorme, gigantesco que ainda não acabou de passar. É que não pára. 17.28, diz-me o relógio. Boa. Hora de levantar e inspeccionar o que se passa fora do quarto. A amizade não se compra e assim sinto-me em casa. Esta, por sinal, é caricata. Digamos que a minha mãe se recusaria a entrar aqui. A sala já merecia um sofá e as cadeiras já tiveram melhores dias. Uma televisão virada para a mesa oval, que ainda segura os pratos, panelas, talheres e copos, que por sua vez teimam em albergar o jantar da noite anterior, dá a cor sonora que entretém. Os restos do tabaco de enrolar estão espalhados por todo o lado, ocupando os espaços que ainda estavam menos sujos. A pequena cozinha está atafulhada de loiça, por lavar, claro. No entanto, sabe bem estar aqui. O próximo passo consiste no banho. Esse sim, o único momento relaxante do dia, merece ser aproveitado. Até porque é bem necessário. Vestir, Pingo Doce (ainda me lembro quando era Inô), carne picada, massinha, molho de bolonhesa marca da casa (muito bom), super bocks e Lima Limão, desencantar umas panelas, lavar três pratos, esperar que o cozinheiro faça o seu milagre e repor energias. 21h. Vestir o kit trabalhador e já estou atrasado. Boleia até ao recinto. Onde vou arranjar força para aguentar a noite toda? ´Tou todo partido…credencial e revista. Esta é a hora em que o recinto começa a borbulhar. Mudam-se barris, repõe-se stock, grelham-se os primeiros hambúrgueres (ou hamburgas, como ouvirei muitas vezes durante a noite), preparam-se as primeiras bifanas e cachorros. Por enquanto só os companheiros trabalhadores de recinto vão pedindo. É tipo um aquecimento. Como por magia, sem ter a decência de avisar, de preparar o incauto transeunte, Marante arranca os primeiros acordes da sua guitarra e mostra porque a sua voz é única e inconfundível. Assim dá gosto trabalhar. Sirvo umas bifanas ao som da Linda Portuguesa e logo de seguida, como que de uma estocada final se tratasse, Garçon. Só para verem com quem se metem. Ora tomem lá. Consigo perceber quando um concerto acaba pelos fluxos “migratórios”. Olho para a minha direita e vejo uma onda formada por cabeças, cartolas, capas, brincos e afins a vir para cima. Isto significa trabalho. Sim, porque um concerto de Diapasão é de abrir o apetite! (ora aí está um bom trocadilho). Só acalma quando se houve uma outra voz, desta feita muito menos melodiosa, com o vulgar “E salta malta, e salta malta, olé”. Quim. O Homem. E o mito. Como que por magia, as pessoas voam para a plateia para se deliciarem com a cabritinha, a picada do enfermeiro, o bacalhau e a Maria, a padaria e a Maria, e por aí fora. Muito bom, esse artista. Não percebo como um Marante desce ao ponto de fazer a abertura. De qualquer forma, podia estar ali a noite toda. Mas não, o teimoso hora e meia depois vem-me dar trabalho. A onda que falei em cima quadruplicou e só voltei a respirar por volta das 5 e 30. Durante esse período de tempo só vi gente indiferenciada, braços, senhas, chatos, pacotes de maionese, ketchup, mostarda, cachorros, hambúrgueres, sandes de porco no espeto (“bem recheadinha se faz favor” repetido ao expoente da loucura), copos, bebidas, sujidade, bêbados, chatos, artistas, palermas, gajos que já deviam ter idade para terem juízo, mamas, chatas, bêbadas, pão e guardanapos. Quando não estou a ouvir pedidos e gritos, consigo ouvir a boa música proveniente dos carrinhos de choque quês estão mesmo à frente, por vezes interrompida por sirenes. A melhor parte da noite é quando olho em frente, lá para o fundo e começo a ver dia. Que bem, está a acabar. Um último esforço. Também, o que resta são os últimos pedidos desesperados, as últimas tentativas de arranjar qualquer coisa de borla. Nem que se minta com esquemas e esqueminhas. “oh sócio”, “oh mano”, “já te dei a senha”, “dei ao teu colega mas ele esqueceu-se”, “olhe, paguei três euros quero que venha muito bem servido”, “orienta aí qualquer coisa”, blá, blá, blá. Será que eles percebem que eu nem os oiço? Pelo menos percebem os seguranças quando os começam a empurrar. Já não servimos mais. Closed. Cerrado. Tomorrow. Não sobrou nada amigo. E finalmente o silêncio. Uma visita às denominadas casas de banho, que já estava em espera há muito e começar a última parte. Com o sol já a mostrar-se, limpar os quilómetros de inox, despejar os restos, apanhar o lixo todo e varrer a massa indistinta que é a parte da frente da bancada. Bolas, não percebo como não há mais acidentes de percurso por aqui. O chão parece um autêntico ringue de patinagem, até para mim, completamente sóbrio. Ver o recinto a esta hora, vazio, constitui uma imagem singular. O chão está colorido com milhares de copos de plástico, papéis de todo o tipo e…coisas. O que mais incomoda é o silêncio. O palco distante sem luzes, os ecrãs desligados, as barracas fechadas. De vez em quando ainda passa um perdido, mas rapidamente lhe é mostrado o caminho. O balanço da noite é extremamente positivo. Mesmo em termos de dores de costas, pernas e pés. Até logo, fazemos contas depois chefe, e saio do recinto. Cá fora o aspecto não melhora. O plástico continua a sufocar o cimento, e ainda se vêem muitos resistentes, à espera do autocarro, de um táxi ou de melhores dias. Abraços, beijos e quedas animam quem passa. Eu é que já me meti num táxi, que bem mereço. Bom dia e bairro de St.ª Luzia se faz favor. Pago menos 30 cêntimos, não tenho trocado e o que importa é que haja saúde, vá lá a sua vidinha. Saio ao lado do café, onde nem preciso de pedir. Croissant com manteiga e um leite com chocolate. Aproveito para lavar as mãos e constatar que o senhor de cabelo branco, extremamente bem penteado está na mesma mesa, a acabar novamente as palavras cruzadas. Informo as autoridades competentes que vou dormir e assim faço, mal encontro o leito e me enrolo no saco cama. Daqui a pouco é outro dia.
2 comentários:
Realmente! Pobre marante, não há direito!
BRUTAL!!!!!!!!!!!!!!!! so de imaginar o q escrevest ate me arrepio! e de pensar q pisei mts desses copos e nem conta dei. xD mas na melhor noite (Domingo), tivest q me aturar, e a minha vista era um pc turba, ou era claridade a mais :S . o percurso eternamente demorado, la passa e consigo chegar a cama. :D grand abraço!!!!
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