As mãos da minha avó podiam contar histórias intermináveis perdidas já há muito no nevoeiro da memória, histórias cujos heróis e figurantes também já se desperdiçaram deste terreno. Mesmo no conforto da minha cama consigo imaginar todas as rugas que lhe revestem as mãos tornando-as ásperas e sedosas. São as mesmas rugas, do tempo, das angústias, das tristezas, dos longos invernos que lhe moldam o rosto, gasto, embelezado por longos e fracos cabelos brancos emaranhados numa teia de ganchos impossível de perceber, em perfeito contraste com todo o negro que a envolve. Desde a morte do meu avô, companheiro de nós os dois, que o preto tomou conta do guarda-vestidos, blusas, camisas, camisolas e saias de padrões coloridos foram atiradas para um canto de onde nunca mais saíram. Provavelmente já se mudaram, cansadas de estarem esquecidas. Desde então toda a indumentária oscila entre o preto e o preto, ocasionalmente interrompido pelo cinzento (escuro). Até porque o que diriam as vizinhas, também elas em protesto com as cores. As vizinhas, companheiras de conversa, missas e horas que teimam em não passar. Tudo anda devagar na vila ao largo do Douro, sobejamente colorida (ironias) pelas amendoeiras, as encostas verdejantes, extensas vinhas a perder de vista e pelo caudal calmo do rio. A casa ocupa lugar de destaque, digno de uma torre de vigia. Da comprida varanda pode-se espreitar todos os movimentos, passos e encontros da pequena agitação na vila. A parede que serve de suporte ao posto de atenta vigilância já foi verde, não de tinta, mas sim da densa e secular hera que a cobria. O planeamento urbanístico da vila evoluiu, cortou-se a trepadeira e agora a parede é de um branco deslavado, sem cor nem graça. Por dentro a casa cheira a madeira. E a calor, vindo da cozinha, da sua “lareira” sem portas. Também se sente o silêncio, a ausência da guitarra portuguesa acompanhada pela voz de quem a sabia fazer chorar. Os móveis imóveis de tristeza e solidão lamentam a sua sorte e a custo resistem. Nos longos períodos em que fica na outra casa, na nossa, assume total responsabilidade pela roupa e alimentação da família. Com uma mestria única. Vitalidade e certeza nos gestos. Parece simples fazer torta de batata ou pudim, quase aprendi a passar a ferro decentemente ou a fazer o nó da gravata. O pagamento destes maravilhosos serviços faz-se perante a apresentação das lamúrias, que estou cansada, que isto já não é para mim, enquanto se deita no sofá depois do almoço ou nos instantes que apanha alguém desprevenido. Nunca descorou a nossa educação, aliás, os estudos sempre foram a sua grande preocupação, que sem isso não são nada. Lembro-me da tristeza acumulada durante semanas quando concorri para psicologia, foi a morte do sonho, ainda que muito vago nos últimos anos de liceu, de ter um neto médico. Para ser alguém na vida, que isso é que é um curso. Tentem vocês argumentar com a felicidade, valorização e satisfação pessoal quando do outro lado da barreira está a credibilidade, o filho da vizinha que já se formou e o dinheiro, que isto está muito mau. Chegou a prometer-me um carro, caso lhe desse ouvidos. Agora percebo a forma que o amor tomou nessa circunstância. E na outra em que me escondeu as calças da resina, depois de remendar os centímetros que arrastavam pelo chão. Não sei se hoje sou alguém na vida avó, mas sei que me ensinaste mais do que julgavas conseguir. A aceitar, a procurar, amar e escolher caminho. Parabéns. Vou continuar a adiar pensamentos que nem quero escrever e afirmar que para o ano há mais.
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
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7 comentários:
Este texto é muito longo, leio mais mais tarde.
este gajo é muito insensivel, devias ler o texto e dar os parabéns á avó do nosso companheiro....da borga, das moelas e dos panados...
esa terra parece ser muito fixe, e em casa onde quase se ensina um homem a passatr a ferro, devia entrar medalha de mérito :)
Parabéns =)
Um post muito bonito =)
Dora
Ah ganda Chou Riçá, isto sim é um post. Não é aquelas merdas dos Pessoas e Etcéteras (eheheheh).
Pronto. Já li.
Reparo agora que fiz mal em não ler à primeira, grande texto e parabéns para a tua avó.
Ena pá, cinco comentários antes das 14.30 é optimo! assim se começa bem o dia. muito obrigado pela parte que me toca e obrigado também pela parte que toca à minha avó. :D
Chou riçá
(oh bale, tens q ir ao blog do corista, tem la coisas para nos)
Adorei ;)
Um dia quero ir conhecer a tal vila ao largo do Douro e naturalmente a tua avó :D
um beijinho*
Tina
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